Dia de Finados


Acordou num feriado. Levantou depois das 10. Não foi à praia. Protelou o quanto pode viver esse dia. Primeiro o banho, letárgico; o almoço em família, incompleto; as correções, inúmeras. Fez de tudo para tomar seu tempo que, hoje, não quis ter. A noite que tanto queria chegou chuvosa assim como o seu arrependimento. As horas se foram. Ele não sabia o porquê, mas não foi visitar seu pai: Quadra 16. Túmulo 8. Jardim Celestial.

Nívia Maria Vasconcellos

Inoperante


Não visitei a rua,
Sequer o caminho.

Fiquei à janela
Pensando sair.

Com a mochila
Cheia de vontades,
Apenas fiquei.

Até que, um dia,
De pronto,
Removeram-me
De mim.

(Nívia Maria Vasconcellos)

A distância é um horizonte invisível


A distância é um horizonte invisível
Onde vejo tua ausência e fuga.
Em luta, corro o itinerário vago, 
Pensando chegar aonde não se sabe

Cabe a meu passo e a meus olhos
Formarem o trajeto que sigo.
Comigo apenas e sem mapas, 
Não há datas ou hora de chegada.

Peço socorro ao infinito
Em que, imerso, me desespero
E quero, desejo, sonho (imenso)

Que esse horizonte que não vejo
Mude o caminho, volte à partida
Para que eu possa impedir tua ida. 

Nívia Maria Vasconcellos 

TATUAGEM

Pensava em se tatuar um dia. Pensava nisso há anos, pensava... sentia que seu estilo, seu tipo, seus gostos, tudo em si pedia uma marca, uma tatuagem. Mas a dor, os riscos, o medo. Desistia sempre antes mesmo de se decidir, não se permitia concretizar seu desejo. Antes, não tinha dinheiro; depois, não tinha desenho; faltava-lhe mesmo é coragem. Ia a estúdios, fazia orçamentos, ficava imaginando como se sentiria mais “ela” se tivesse a desejada “tatu”. Mas os meses, ou melhor, os anos de uma epiderme sem a querida marca se somavam. A pele de Amy Winehouse causava-lhe espanto e inveja. Via meninas pela rua cheias de tatus e as achava tão pueris para tê-las... moda, só podia ser por moda. Ela não, sentia-se preparada. No ponto. Não era uma decisão induzida, não seguia tendências que tanto odiava, uma tatuagem para ela era tão necessária para que ela fosse o que era, para comunicar isso. Mas não a tinha. Talvez fosse a voz da mãe que, desde sua infância, falava sem parar: Isso é coisa de ladrão, de gente que não presta, de mulher da vida, de maconheiro, de drogado, de gente que não presta mesmo... Quiçá, o medo de sua mãe pensar que ela fizesse parte dessa lista famigerada tolhesse sua vontade, inibisse sua realização. Não era completa sem a tatuagem, sabia que seu corpo era o lugar perfeito para uma “tatu”. Sofria com aquela ausência.
Mas a tatuagem não vinha... e não veio...
Uma adolescência sem tatuagem, uma juventude sem tatuagem... Hoje, pensa que seu corpo já não merece ostentar uma marca tão forte: perdeu seu estilo, seu tipo, mudou seus gostos. Seria ridículo – pensa às vezes – ainda que aquela vontade, apesar de abafada, exista. Culpa das palavras maternas? Para não ser o que a mãe não queria, passou a ser o que não era? Só conseguiu ser igual. Sem nada no corpo que a identificasse ou revelasse, a não ser uma indesejada cicatriz de um acidente antigo, tatuagem é apenas uma linda e lírica música que ela sobeja sempre quando triste...

Nívia Maria Vasconcellos

DESAMPARO

Antônio Brasileiro
Não recitei para ti o verso que guardei
Na memória e no coração.

Outros me viram, ouviram e aplaudiram
As palavras que eram para ti.

Outros, não tu, estavam a minha frente,
Não tu, a quem tanto esperava.

Todos lá, mas, capturada por minha retina,
Tua ausência se impôs mais forte.

Presenças esmaecidas pelo teu abandono,
Teu abandono de mim.

Não entendes minha tristeza e silêncio?
Nem eu a tua falta e omissão.


Conflito

à Mirian Aislane 
 Diante do horizonte, tudo perde a razão. Todo olhar parece insuficiente para alcançar tudo o que pode ser conquistado, e, como um obstáculo, um limite se impõe a cada passo. Braços parcos, finitos para tamanha grandiosidade. O rapaz, à janela, morre... prenhe de sonhos incompletos... Tudo o que é vivo não dura o bastante para ser eterno.       

CONFLITO - DE GABRIEL FERREIRA
DESENHO DE POESIA-INSPIRADO NESSE CONTO
ACRÍLICO/ TELA DE GAZE
(50x50)cm
2006






Solitas

O céu amanheceu escuro...
Até certos trovões foram ouvidos
Com um espanto quase infantil.

Procurei, debalde, a meu lado,
A presença que não estava,
Que eu sabia não estar.

Aqui, junto a mim,
Só a miragem e um tanto
De saudade... e pronto.

Mas essa saudade é um lugar:
O lugar onde eu te encontro.



Nívia Maria Vasconcellos