APENAS MAIS UMA NOITE QUALQUER

Lançava roupas e mais roupas ao chão, cada peça se entulhava em meio a outras de tal modo que não dava para saber o que era saia, calça, blusa... parecia um grande monte,  um taludo e colorido monte, um monte de tecidos espalhados também pela cama e pelo criado mudo. O espelho declarava o veredicto, e ela, com muita insegurança, tirava seu traje de noite e logo o substituía por outro e outros que sempre tinham o mesmo fim: serem lançados ao alto para caírem “onde Deus bem quisesse”...  Ora se achava gorda ora magra, ora muito conservadora ora saidinha demais... e mais roupas passavam a sentir o seu desprezo, avaliadas e reprovadas iam se juntar as que já haviam sofrido esse súbito e irrevogável processo. Sua escova que tomou quase todo o seu tempo livre e tornava os seus cabelos menos naturais, mas (a seu ver) mais belos já deixava de existir a cada colocar e tirar do seu frenético vestir e desvestir constantes. Queria, a todo custo, fazer-se bonita, não, não... linda! Queria fazer-se linda! porém, a cada olhar-se, não se sentia bem e seu guarda-roupa ia se esvaziando...

Ao fundo, o rádio gritava músicas diversas que, às vezes, impunha ao seu trabalho um ritmo que, no início, a fazia até dançar, fingir-se ser uma stripper a despir-se e a atrair todos os olhares que ela imaginava conquistar. Depois, sua imaginação cansou-se, sabia-se só e indecisa: vermelho ou preto? O interfone toca. Beatrice, dantesca, corre à cozinha, interfone na mão e voz forcejada: Alô. Estava despida, só suas peças íntimas encobriam um pouco do seu corpo, isso infligia a ela certo constrangimento, como se, do outro lado da linha, a voz que com ela conversaria fosse capaz de vê-la (do jeito que estava) semi-nua e descobrir algumas partes que ela, mesmo em momentos mais íntimos, esforçava-se em esconder. E repetiu: Alô! Nesse momento, o silêncio foi interrompido pela informação de que o Champagne havia chegado. Manda subir. Disse ela, já desligando e voltando esbaforida para o quarto a procura de algo que a permitisse atender o garoto da entrega que a qualquer momento bateria em sua porta. A campainha anuncia, depois de instantes, o Champagne. Só conseguiu colocar uma toalha. Abriu a porta de canto, estendeu a mão para receber a bebida e foi acompanhada pelo olhar atencioso do rapazinho que à sua porta estagnava com a mão de quem espera gorjeta e o corpo de quem quer entrar. Teve, é claro, suas duas pretensões frustradas. Não sobrava muito tempo. Colocou a garrafa embebida num balde com gelo e voltou para a sua tentativa de arrumar-se.

Olhou para espelho como quem se pergunta o que fazer. Largou a toalha. Se fosse só a roupa já teria problemas suficientes, mas ainda tem a maquilagem a fazer, o cabelo para pentear. Nesta hora, o relógio, estava mais do que nunca atrasada. Decidiu-se: a saia facilitaria carinhos mais atrevidos, escolheu a mais curta que tinha e simulou como uma mão poderia atravessar-lhe – atingindo o alto da sua coxa, arrepiou-se. Uma sandália alta valorizaria ainda mais as suas pernas: calçou-a. Começava a encontrar a Beatrice que pretendia ser. Vestiu a blusa, manerou em seu decote, as pernas já carregariam a sedução necessária.  Cruzava-as e as descruzava como quem ensaia. O tempo... partiu para a caixa de jóias. De novo, o interfone: Mas, já!?, não pode ser!?. Alô. Preocupação e nervosismo, externava. Senhorita Bia, reunião dos condôminos hoje às.... Tá!! Interrompeu, voltando à sua tarefa que chegava ao fim. Maquilou-se. Ignorando a música que a rádio tocava, cantava com intensidade “Se acaso me quiseres sou dessas mulheres que só dizem sim.” Agora sim, sentia-se desejada, bonita... linda!. Sempre ensaiando mais um pouco como sentar, levantar, andar até como levar a taça à boca e o olhar que faria. Experimentava seus gestos, queria lhes atribuir poderes de atração e fascínio.

Vestida, maquilada e penteada recebera a permissão do espelho para manter-se assim. Estava, então, pronta... finalmente. Percebeu que o tempo, naquele instante, começara a arrasta-se, tinha mais tempo do que pensava. Sentou-se na cama. Cansada, mas satisfeita. Esperava. Fantasiava o espumante sobre seu corpo e uma mão a deslizar sobre a sua pele. Seus cabelos chegavam a eriçar tamanha a veracidade atribuída a seu corpo por sua imaginação. Não se aguentava. Esperava. Olhava o telefone e desviava o olhar para a porta, para o celular. Esperava. Estava já deitada com o corpo exalando a sensualidade que ela pensava ter. Era capaz de sentir uma mão sobre o seu peito como se não fosse a sua. Tocando-se, esperava. Parecia não precisar de mais ninguém àquela hora. Mas, mesmo assim, ansiosa, esperava....

O telefone. Beatrice sente um prazer ao ouvi-lo: Bia? Sim... (já não suportava sua volúpia. Podia tê-lo ali, por telefone mesmo). Diga (seu tom era de lascívia, entrega). Surgiu um imprevisto. (?) Vai chegar atrasado? Não. Já estou pronta. Não, você não me entendeu. Entender o quê? Eu não vou... Como? (sua conquistada estima se abalou).  Eu não vou poder ir, não passarei em sua casa hoje... Silêncio.... (não sabia o que dizer). Bia? Você ainda está aí?... ... ... ... Tô. (despiu-se de qualquer lubricidade). Beatrice, deixa pra outro dia...viu? ... ... ... Viu.... Sua voz ia sumindo insatisfeita. Pensou em perguntar o porquê, achou inútil; pensou em xingá-lo, desnecessário. Por que não ligou antes? Pensou. O gelo do balde ia derretendo e a roupa de Beatrice ia perdendo o seu viço. Bia? (insegura) Nando, diz que me ama... Silêncio... Diz que me ama... (insiste)... Mas... mas, nós ainda nem nos conhecemos...

Abandonou o telefone. Não resistiu. Maquilagem já borrada, roupa amassada, pés descalços: perdera a mulher que, há pouco, havia encontrado. Foi do quarto para a cozinha algumas vezes, parecia querer correr. Quase gritou. Tomou do caro Champagne que comprara, sozinha. Voltou ao quarto e sem grandes empecilhos ou dúvidas vestiu outra roupa, uma roupa qualquer. Desceu: os condôminos e o síndico a esperavam...

Nívia Maria Vasconcellos

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